Rainha Arunã – a índia-cabocla guerreira


Texto escrito por Augusto César Veloso para mim.

Mensagem: Arunã foi inspirada na luta, na determinação, no trabalho e nas dores e sofreres de alguém real, Priscyla Caldas. Somos todos passageiros na vida e, importa pouco vencer e/ou perder. Mas, ir sim em busca dos nossos mitos para vencer a nós próprios. Priscyla, apesar do pouco contato te agradeço muito.

 


[Conto]

Rainha Arunã – a índia-cabocla guerreira

 

A noite desce na aldeia, na beira da foz do rio muitos navios. Em posição de prontidão milhares de bravias guerreiras, mulheres prontas para tudo. Guerra faz parte da vida, guerrear é lei: lutar para matar e não morrer, conquistar para sobreviver.

Numa grande clareira, a tenda coberta com peles de animais, as guerreiras se aprontam e as últimas instruções são dadas: – Somos guerreiras mulheres, assim sempre foi. Hoje seremos guerreiras e guerreiros. Os mais hábeis a frente das suas tropas. Venceremos juntos, perderemos juntos se for a vontade dos nossos deuses.

As alas são remontadas. Arqueiros, lutadores, lanceiros e até cavalos são dispostos. O ritual de guerra começa. Em volta de um círculo, as 77 comandantes desenbainham suas espadas e apontam na direção central. Em pé, a rainha Arunã eleva sua espada ao céu. A lua cheia clareia as águas, as faces das guerreiras e reluz no aço como também por entre as árvores, enquanto o som dos búzios e das espadas se tocando anuncia o que terá por acontecer, a guerra.  Não tem mais volta.

As oferendas feitas colocadas no altar,  os olhos se despedem dos pares, família, amigos e até da vida.

Arunã, evoca as deusas da natureza suas ancestrais sua protetora.

Arunã evoca a força das suas guerreiras e guerreiros.

Arunã evoca a vida e a morte.

Sua voz forte ecoa ao bater do aço, no aço das espadas por 7 vezes. No chão, no solo os pés fincam 7 as batidas. Os tambores marcam espadas, pés e batidas. Ritmo marcado, forte sem parar.

Ao redor da fogueira, homens retiram lanças incandescentes, em cada braço esquerdo ela risca, queima a pele. Bramidos, surdos ecoam. As carnes feridas pelo fogo não doem: vencer. Não tem vitória sem morte, sangue sem rainha para comandar. Ela é Arunã, rainha guerreira.

Na rainha despida, as vestes de batalha são colocadas, arco e flechas, adaga e escudo, um colar no pescoço pintura de guerra no rosto adornos de proteção. Arunã a guerreira está vestida.

A lua marca a trilha prateada na água do rio o caminho a via de confronto. Os tambores marcam os passos. As velas são levantadas, remos no alto batem no convés, a embarcação mãe preparada: remadores, guerreiras armas e almas prontas.

O círculo das comandantes guerreiras se abre. Arunã segue o caminho das tochas acesas iluminando a ponte até sua embarcação. Agora de pé na proa ela acena e fala: – Nossa terra foi tirada, nossos filhos passam fome nossos ancestrais choram e nossos deuses pedem seu solo. Não tem guerra sem morte e não tem vida sem morte. Morreremos por nossos filhos, nossa natureza mãe e pelo tempo para viver.

Os tambores rufam: tum-tum tum-tum pausadamente. Mais uma batida e os remos descem para água. As batidas continuam, os remos movem o barco, a brisa que vem da foz do rio-mar enchem as velas e o som do chicote na mão de Arunã, arde no assoalho do navio.

Sua embarcação é a primeira e todas as seguem. O chicote açoita a madeira e o som corta os ouvidos, dessa vez não cortam as peles dos remadores. Os remos movem água mais rápido, o suor molha os corpos e remos respingam no chão molhado da embarcação. Arunã impávida e de pé. Olhar à frente, ouvidos abertos, coração frio. A esquadra de Arunã continua a subir o rio. Silêncio quebrado pelos rufar dos tambores.

De repente um som ensurdecedor ecoa pelo ar. As águas tremulam, os pássaros escondidos nas árvores voam o leito e as águas do rio se revolvem. No horizonte para onde o rio dirige Arunã e suas guerreiras, um clarão aparece. Ainda é noite e não é dia. O clarão aumenta como um sol se  levantando entre nuvens negras. Arunã volta os olhos a seus guerreiros enquanto o som e o clarão penetram em seus corpos. Os remos diminuem, os barcos vão parando. O barulho aumenta, o clarão resplandece e clareia mais a noite. Arunã acena para seguirem em frente. Seu grito de guerra estremece reverbera nos ares. O chicote açoita o chão, lasca madeira mais forte ainda. Os tambores rufam, respiração aumenta, os corpos respingam suor nas águas do rio. Arunã avança com sua esquadra.

No rio as duas frentes já se avistam, um imenso lumiar clareia a noite. A nau de Arunã é rodeada. Seus guerreiros e guerreiras aproximam, emparelham e tocam os barcos; a cercam pela frente e pelos lados. Arunã olha, retira sua espada da bainha. nada precisa ser dito, todos sabem o que acontecerá. Os desafios são pagos com a vida, corpos dilacerados são pregados no alto dos postes. Seus guerreiros não temem morrer, todos nem precisam se olhar. Sabem o q estão fazendo e o que lhes espera.

A espada continua em sua mão, sua face muda e seus olhos se perguntam sem querer resposta. As esquadras avançam, os gritos de guerra são rugidos de feras, animais bestiais que explodem nos ares coloridos com fogo e vermelho de sangue.  Ambas medem forças nos sons pavorosos que emitem,  nas tochas acesas na quantidade de naus. Por entre sons, cores, ódio, um pequeno barco deixa a  esquadra inimiga. Conduzido por remadores ele avança em direção aos barcos de Arunã. Tudo parece parar até o tempo, as  esquadras param, os animais cessam de rugir, o barco não para, se aproxima. Arunã e seus guerreiros observam o que está por vir. Eles não sabem, só esperam. Agora, mais que nunca o tempo é ditado pelos remadores. Prontidão.

O barco desliza na água, e de salto os remadores se atiram no rio e nadam. Vigorosas braçadas, retornam para suas bases. Mais apreensão. Arunã espera, o barco que segue sem comando na única direção, a sua. Tensão, mais espera. Nuvens escuras sobrevoam e ocupam os céus, trovões e raios inesperados cobrem a lua e ofuscam as tochas. Algo terrível pode acontecer.

Se avistam os mastros do barco compridos e sem velas. Algo se mexe neles. Parece gente, pessoas estão amarradas; em cada um, um alguém. Arunã espera. Mesmo pela noite escurecida rapidamente, lhe entregam algo. Arunã aproxima do rosto, seu semblante endurece, seu corpo treme, não desfalece.

O tempo parou. Ainda junto ao olho, escorrem lágrimas por ele. Ao lado suas guerreiras paradas, Arunã entrega o instrumento. Ao olharem suas guerreiras perplexas, o pai de Arunã, o velho rei e seus dois irmãos, antes dados como mortos e insepultos na última batalha, agora vivos amarrados aos mastros. Nesse momento, flechas de fogo são lancadas e caem no barco que logo pega fogo. Um rugido mais tenebroso ainda ecoa. As velas são levantadas, os remos descem para dentro d’água e mais cor e fogo, as tochas inimigas acendem o temor. Avançam em direção a Arunã. O barco pega fogo.

Arunã contém seus guerreiros. Empunha seu grande arco, lágrimas não escorrem de sua face, põe flecha e mira para o alto. Ordena seus dois mestres de armas a fazerem o mesmo. Respiração presa, corpos eretos e firmes. Miram o barco em chamas, elevam o arco para o alto e disparam. As flechas sobem em arco, o zunido das três flechas cortam o ar, desaparecem. Cortam o ar em elipse e caem. Transpassam os corpos presos aos mastros. Estão mortos. O fogo não os destruiu sofridamente, as flechas abreviaram suas mortes.

O ar sorvido volta a encher os pulmões, eriçam peles e pêlos. O chicote de Arunã açoita o chão da embarcação com a força e altivez de uma rainha guerreira. Seus guerreiros descem os remos, os tambores respondem e num rugido mais alto mais raivoso ainda vão ao encontro do inimigo.

A terra, o rio, as árvores tremem. A ira de arunã e seu guerreiros e guerreiras remexem as águas antes calma. A batalha começa.

Um movimento inesperado. As naus que transportam os guerreiros montados retardam a velocidade, se desgarram das demais. Se dividem em direção às duas margens do rio. Parte da batalha será em terra. Bem distante, elas perdem-se de vista.

O comandante prepara o desembarque. As patas dos animais já pisam as margens, revolvem água, terra e se embrenham na mata, parecem conhecer as trilhas o caminho clareado pelas tochas incandescentes.

As ações são lentas, menos a agitação celeste das nuvens escuras, a lua encoberta raios trovões levados pelos ventos. As duas esquadras se aproximam e esperam, um momento, um ataque, um revide. Arqueiros, lanceiros, arremessadores prontos. No convés, Arunã empunha sua lança, olha ao redor, o horizonte bem próximo e recua para atrás do mastro. Percebi o vento a seu favor. Uma fresta abre na frente de sua nau antes protegida.

Arunã respira, corpo ereto, três passos largos a frente, rápida inclinação lateral, braço direito uma lança arremessada. O tempo viaja pelos ares pelas as águas agitadas. O tempo viaja na lança.

Um baque surdo ecoa no piso da nau inimiga. A lança ensanguentada finca na madeira, antes transpassa um corpo. O comandante inimigo está morto, cravado no peito pregado no piso. Logo as lanças e flechas são atiradas de ambos os lados. Corpos feridos, sangue, dores e gemidos surdos. Mortos tombam em todos os lugares, caem nas águas.

A luta é corpo a corpo agora. As duas esquadras se tocam, guerreiros sobem nos barcos, espadas escudos facas golpes sangue membros caídos decepados corpos lascados dilacerados. Todos possuídos, dominados pela força para matar. Desejo de matar, continuar ferindo, matando, mesmo feridos, abrindo caminho entre o resto de vida e vizinhos da morte.

Arunã não para de lutar. Suas vestes de batalha manchadas de sangue parecem leves diante do esforço de guerrear. Guerreiros caem mortos, feridos. Corpos pisados mais ainda mortos, ambos os lados matam, ferem, morrem.

Um golpe inesperado pelas costas fere sua irmã mais velha, a grande guerreira, ela tomba desfalecida. Arunã pára sem ação, os olhos abrem, um profundo grito de dor ecoa, mas ninguém escuta. O corpo de sua irmã caído sem vida. Seus joelhos dobram, vertem sobre um corpo também caído. Um inimigo agoniza debaixo do seu corpo. Furiosa Arunã crava a espada no  peito do inimigo caído. Sangue esguicha em seu rosto. Mais força, mais vontade de matar, Arunã se lança contra os inimigos. Todos se lançam para a morte.

A rainha está morta. Seus guerreiros fogem, abandonam a luta, as naus recuam. Arunã se atira num golpe para destruir o inimigo sem líder. Mais luta, pouca resistência. A batalha está vencida guerreiros inimigos, rendem-se. Um grito de vitória Arunã brada, seus guerreiros acompanham. Espada levantada, a nau inimiga a seus pés.

As nuvens descarregam chuva, Arunã venceu. Arunã venceu! Arunã e seus guerreiros venceram!

As águas limpam os corpos, lavam as naus, diluem o sangue dos mortos dos feridos, não as dores, não as perdas. Vencedores ainda bradam, perdedores calam,  se rendem, outros fogem. Chuva cai, névoa se propaga e envolve vencidos e vencedores, vivos e não vivos, naus.

Na mão, Arunã finca sua espada no solo  inimigo, seus comandantes aproximam. Um grito. um corpo flechado, um corpo caído. Mais flechas caem do céu com as chuvas. Arunã vira, flechas caem a seu lado. Arunã é o alvo. Seus guerreiros a protegem, cercam, se atiram sobre ela. Arunã foi ferida. Como gotas de chuva, flechas caem, corpos crivados caem e se espalham. Agora a luta se dá em terra, em algum lugar adentro das margens. Da terra partiram as flechas.

A chuva diminui a névoa dispersa. As flechas não são mais lançadas. Silêncio. Sangue escorre, guerreiros caídos, corpos sobre corpos amontoados.

Ajudada, aflita a comandante de armas retira os corpos. Arunã ferida não responde, cabeça mole, peito sangrando.

As armas de nada adiantam agora. A comandante chora. O ferimento de Arunã tampado não sangra mais. Sua cabeça deitada sobre a perna parece descansar. A proteção da cabeça é retirada sua face é acariciada, as lágrimas e a chuva que volta a cair, limpam as manchas de sangue de seu rosto. A chefe de armas chora, chora, nada mais se ouve, Arunã está morta. Os guerreiros estão mortos, protegeram seu corpo com os corpos deles, todos estão mortos.

Seus cabelos, seus braços, seu rosto, seu abdômen é tocado como um ritual. Um cântico é entoado uma canção em meio ao choro. Uma mão apoia a cabeça de Arunã junto a sua cabeça, a outra afaga seu ventre. Lamento, lágrimas, canto, afago, noite, morte.

A mão parada sobre o ventre de Arunã. Sua mão se mexe, sua mão treme. Ela não morreu, Arunã não está morta! Outra mexida, sem força a mão de Arunã segura a mão da sua guerreira. Os olhos entreabertos, a respiração leve, as mãos seguram a vida. O sangue parece circular novamente, Arunã voltou a vida.

Rostos próximos, Arunã diz sem força: “Vencemos, vencemos, não sei se vou viver.”. “Sim minha rainha, Arunã viverá”, diz a guerreira aos prantos. Arunã continua: “Se eu morrer, não fale a …… que esperava um filho dele. Você sabe o q tem de ser feito. Basta de mortes de guerras…”  “Minha rainha, não se vá, como poderei fazer o que me ordenas? Não se vá, não nos deixe!”, exclama sua guerreira. Suas mãos presas uma a outra se soltam. Arunã não fala mais, os olhos fechados, respiração leve, corpo entregue a morte ou a vida. Ela é levada.

Nas duas margens, a luta ainda continua, mesmo vencida a batalha naval. As nuvens se dissiparam, a chuva cessou. No céu a Lua, no outro lado o dia começa a surgir. Um rio de sangue, naus incendiadas, cadáveres boiam, outros agonizam. A batalha no leito do rio termina, não dentro da mata.

O Sol está nascendo mais uma vez, agora mais cedo ele clareia o dia e repousa a noite; já é primavera. Se passaram tempos. As mulheres saem da tenda, se apressam, está acontecendo algo. A mulher dos partos é trazida. Arunã deitada, respiração ofegante, corpo transpira e contorce de dores. A rainha está parindo!

Arunã gemi em meio aos cânticos, os vapores exalam aromas de ervas dos caldeirões de água fervente, incensos acesos, é chamado o homem dos ritos. A dor de parir não cala Arunã. O corpo pequeno não sai de dentro do seu. As mulheres entoam cantos e, em volta do leito feito na terra, elas cirandeiam ao seu redor. De olhos fechados o senhor dos ritos entoa uma prece, segura a mão da rainha, ela delira pronuncia algumas palavras. Ele compreende as palavras sem força da rainha, balança a cabeça como um sim.

A manhã chega, a tarde adentra. A aldeia silencia para Arunã parir. O tempo parou, a brisa do final do dia agora suaviza o silêncio, as dores da rainha e a expectativa do nascer. Um grito forte e profundo saí das entranhas, de todos os lugares de sua alma. Silêncio, silêncio, silêncio. O choro de criança, mais e mais choros quebram a espera agoniante, ao longe e muito longe são escutados. O menino lançou-se logo para fora do ventre. A menina veio depois. A rainha chora não mais de dor, o que ela sente, só as mães no fundo sabem.  Nasceu, nasceu, nasceu! A aldeia vibra, os pássaros revoam, a brisa sopra mais forte e a lua desponta na margem do rio. O caminho prateado desse lumiar abre as portas da vida para a rainha e suas crianças. Arunã meio desfalecida recebe seus recém-nascidos, deita-os no peito, um manto sagrado de renda recobre agora mãe e filhos. Adormecem.

Arunã é cercada pelas mulheres, elas entoam uma canção para embalar o sono e dormirem. Elas vigiam os guerreiros pela vida nova. A noite já chegou, o silêncio deu lugar a alegria e festa pelo parto da rainha. Fogueiras acesas, cantos, danças…

Os cães aguçam os sentidos, latem e correm por uma trilha. Algo está por vir, alguém está chegando. O comandante dos cavaleiros e seus guerreiros lentamente retornam a aldeia, meses passaram. Enquanto a batalha no mar terminara, os confrontos em terra seguiam até a vitória final. Não evitou a quase mortenão de Arunã,  ferissem a rainha. Sua decisão de atacar o inimigo nas duas margens do rio, fez a diferença. Ganharam a guerra, a missão foi completada. Todos pacificados, sem saques, execuções pilhagens. A rainha assim desejava, ele assim cumpria. Mas, desobedeceu a grande rainha. Ele sabia todos os guerreiros sabiam o que lhes esperavam.

Montados nos cavalos, parecem desfilar num corredor apertado. Pessoas, famílias, companheiros de lutas saúdam os retornados guerreiros. Mais festas. Próximo de adentrar a aldeia no lado direito, seu olhos avistam os sete mastros bem altos pontiagudos presos na terra. Sabe para que servem. Quase não avançam. Todos querem tocar cumprimentar caminhar ao lado.

Próximo da tenda real descem dos animais. A guerreira de Arunã, vem ao encontro, param por um instante, seus olhos dizem o que acontecerá. Ambos já sabem, mesmo assim um cumprimento demorado e afetuoso. “Vamos comemorar meu irmão, bom vocês retornarem,” ela diz. Uma grande tenda armada, todos pousam, encontram famílias, descansam, bebem, comem, conversam. “Arunã, nossa rainha se recupera, ela não virá. Não pergunte nada, meu irmão de  guerra, eles estão bem, amanhã será um outro dia. Vamos festejar a vida e não mais a morte”. Diz a mulher guerreira. Ela sabia o que fazer, as ordens já foram dadas, o comandante dos cavaleiros sabe o que  ela está obrigada a fazer. Sente algo além disso.

Arunã dorme, famintos os bebês são colocados nos seios fartos de leite da rainha. A aldeia cansada, muito tarde, adormece. Tudo se aquieta, acalma e todos dormem. O dia demora para amanhecer. Que dia é  esse?

O comandante das armas desperta. Parece não saber onde está. A cabeça dói, sente vertigem, deita novamente. Sempre foi um homem sozinho, sem família. Seus guerreiros são sua família, servir a rainha é seu motivo de vida. Levanta depois de muito tempo, já é tarde e de tarde. Os raios de sol penetram a tenda por outro lado. Molha o rosto, a cabeça e bebe água. A cabeça ainda pesa como um peso sobre uma balança, o prato desce pelo peso. Descortina os tecidos tramados para a entrada na tenda. Se surpreende: a tenda está cercada, totalmente cercada.  Guerreiros armados marcam posições e apontam armas. Seu comandante sabe o q significa. Recua.

A guerreira de Arunã abre caminho entre os guardiões da tenda. “meu irmão, você dormiu bem? Ainda bem que dormiu muito. Você sabe porque estou aqui, está preparado para seguirmos?”, falou a guerreira. “eu sei eu sei. vamos lá… o que está acontecendo com Arunã, me diga?”, “você já vai saber. foi bom você apagar esses dias ” respondeu a guerreira ao comandante.  “Vamos?”, a guerreira seguida do comandante abriu caminho entre os guardiões. Caminharam ladeados pelos guardas. Toda a aldeia acompanha.

Silêncio apreensão na caminhada. O comandante sabia o caminho. No retorno, avistou os mastros fincados no chão da clareira aberta. Era para ele e os outros comandantes que deslocaram as embarcações para as duas margens do rio. Um círculo aberto já estava formado. Os anciãos, as chefes guerreiras, o homem dos ritos sentados em seis acentos. No meio deles e mais ao fundo uma cadeira maior vazia; Era de Arunã. No lado direito, próximo de árvores grandes, os mastros agora deitados na terra. Um púlpito de pedra, um cadafalso e uma espada grossa pesada fincada na terra a frente do leito de morte.

A guerreira de Arunã chega com o comandante, ele está sem amarras nas mãos. Outros dois comandantes da cavalaria já estão ali, também detidos. Mais três comandantes das armas, também estavam detidos. Eles dirigiram as naus que cercaram o barco da rainha, protegendo-a. Sete mastros e seis comandantes. O mastro vazio é para uma cabeça. Cada corpo será transpassado por um mastro, depois de morto. A cadeira da rainha ainda vazia. Por um momento os guardas cercam os  detidos. Abrem caminho, Arunã se aproxima. Todos a reverenciam, as cabeças inclinam em direção ao chão.

Arunã senta, todos se acomodam. O ritual de julgamento e execução se inicia.

O olhar fixo do comandante dos cavaleiros pousa sobre Arunã. A rainha encontra o seu olhar. Nada mais parece existir, até a sua morte que está por acontecer. Arunã impávida, olhares hipnotizados. Os detidos acusam suas ações, aceitam as penas. As famílias choram os guerreiros de tantas lutas,  sentem por seus companheiros de matar. Nada podem fazer, nada tem a dizer.

Arunã quieta. A ela cabe a última decisão, mudar a sentença, manter a morte. Arunã nada faz, nada diz. A alma guerreira, o espírito que não se dobra diante dos desafios, a rainha que comanda mulheres e homens, não permite não ser obedecida, mesmo que o custo fosse a sua vida. As naus cercaram a sua, não estava previsto. Os cavaleiros desembarcam nas duas margens do rio, não era a estratégia. Os olhos da rainha e os olhos do comandante ainda fixos, não muda o curso do que acontecerá.

O penúltimo ato da Rainha: ouvir a sentença e mandar seguir. Ela nada profere, a mão esquerda que segura um cetro, bate três vezes no chão. Ela levanta, o cetro em sua mão, a frieza do seu rosto dá lugar a certa comoção. Neste instante, a guerreira, sua grande comandante, dá passos a frente e diz: “Minha rainha, enfrentamos a guerra da nossa vida, enfrentamos a guerra da nossa grande aldeia. Sofremos todos, perdemos nossos parentes, nossos pares para garantir nossa terra e nossos lares. Os deuses nos seguiram nossas lutas. Os nossos ancestrais terão nossas túmulos de volta. Nossos cavaleiros ainda lutavam.” Silêncio… A guerreira se aproxima. A guerreira continua: ” minha rainha, poupamos vidas, não destruímos, não matamos mais pais, não deixamos órfãos e não deixamos mais ódio.”

Silêncio, os pássaros cantam, se ouve um silêncio sepulcral. O vento uiva. Se ouve nos confins da mata. A guerreira continua: ” meus irmãos de guerras meus irmãos de aldeia, meus irmãos… lutamos juntos perdemos juntos e morreremos juntos minha rainha”. continua:  “minhas armas e minha morte eu entrego”. Um rebuliço se forma. Vozes se ouvem, agitos de corpos até a própria rainha, ela não entende. Os 70 comandantes de guerra fazem prontidão diante da surpresa. A sua presença abranda qualquer revolta. As mulheres guerreiras do parto se aproximam. As 10 mulheres caminham. Abrem uma trilha por entre os guerreiros armados, vai até Arunã. Suas cabeças baixas, as vestes brancas deslizam sobre os corpos. Cada uma traz algo nas mãos. A sexta segura sua filha, a sétima seu filho. Envoltos em tramas delicadas e suaves eles dormem o sono dos puros. Entregam os dois a Arunã. Ela segura bem junto ao peito os dois filhos. As demais oferendas ficam a seus pés. Seus rostos são descobertos.

O alvoroço de antes dá razão para a alegria de agora. Emoção, gritos, salvas e lágrimas. Os filhos da rainha estão entre a aldeia. O comandante dos cavaleiros lívido não pensa. Seu corpo estremecido se enrijece, as lágrimas secam, a garganta aprisiona sua voz, ele sabe que são seus filhos. Até então fria, a rainha, é comovida. Fazer o que tem q ser feito; executar sua grande guerreira; matar a paternidade dos seus filhos; prosseguir no caminho da morte diante dos seus? A rainha Arunã pára. Imóvel… Mais uma vez o silêncio toma conta do ambiente. A guerreira de Arunã aproxima dos 6 detidos. Será a sétima, juntos agora para morrer.

Imóvel arunã segura as crianças. O comandante guardião baixa espada e escudo. Ele está logo a frente do comandante dos cavaleiros e da grande guerreira. Um a um dos 69 guerreiros abaixam suas armas. Em uníssono dizem: “Rainha, morreremos todos.” Abaixam as cabeças, vergam os corpos,  tiram as proteções de cabeça para serem decapitados. “Estamos prontos para morrer.” Palavras ditas, sentenças anunciadas.

Silêncio… Não um desafio, uma entrega para morte ou para a sorte. Silêncio… Arunã se levanta. As crianças nos braços. As mulheres do parto abrem caminho. Os passos de Arunã são ouvidos, as crianças nos braços. Todos em reverência a rainha agacham. As mulheres se levantam e seguem a rainha. Seus passos abrem caminho. A sua guerreira e seu comandante dos cavaleiros agachados na sua frente. A menina é passada para o colo  de uma das mulheres, o menino também. A rainha agacha, estende a mão para sua guerreira. Ela se levanta. Seu olhar continua baixo. Da mesma forma, Arunã estende a mão para o seu comandante. Ele se levanta, toma nos braços a menina e entrega a sua guerreira, toma o menino nos seus braços, descobre sua cabeça. Os olhinhos abertos, as mãozinhas agitadas, feições de muita paz e, entrega ao comandante. “Seu filho, seus filhos.” diz Arunã a rainha guerreira. Lágrimas caem dos seus olhos. Não é guerra, não é morte, não é dor. Arunã, a rainha chora diante da aldeia

 

Por: Augusto César Veloso

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